Pedaços da Lenda
Logo que chegou à cidade santa, Joana disfarçada de homem, fez-se admitir na academia a que chamavam escola dos gregos para ensinar as sete artes liberais e, particularmente, a retórica. Santo Agostinho tornara já muito ilustre aquela escola e Joana aumentou-lhe a reputação. Não somente continuou os seus cursos ordinários como também introduziu outros de ciências abstractas que duravam três anos, onde um imenso auditório admirava o seu prodigioso saber. As suas lições, os seus discursos e mesmo os seus improvisos eram feitos com uma eloquência tão arrebatadora que o jovem professor era citado como o mais belo génio do século, e que, na sua admiração, os romanos lhe conferiam o título de príncipe dos sábios.
Os senhores, os padres, os monges e sobretudo os doutores honravam-se de serem seus discípulos. “O seu procedimento era tão recomendável como os seus talentos; a modéstia dos seus discursos e das suas maneiras, a regularidade dos seus costumes e sua piedade, como diz Mariano, brilhavam como uma luz aos olhos dos homens. Todos estes exteriores eram uma máscara hipócrita sob a qual Joana ocultava projectos ambiciosos e culpados. Por isso, no tempo em que a saúde vacilante de Leão IV permitia aos padres forjarem intrigas e cabalas, um partido poderoso se declarou por ela e publicou altamente pelas ruas da cidade que só ela, que era ele, era digna de ocupar o trono de S. Pedro.”
Joana foi elevada à suprema dignidade da Igreja e exerceu a autoridade infalível de vigário de Jesus Cristo com tão grande sabedoria que se tornou a admiração de toda a cristandade. Conferiu ordens sagradas aos prelados, aos padres e aos diáconos; consagrou altares e basílicas; administrou os sacramentos aos fiéis; permitiu aos arcebispos, abades e príncipes que beijassem seus pés; e, finalmente, desempenhou com honra todos os deveres dos pontífices. Compôs prefácios de missas e grande número de cânones, os quais foram interditos pelos seus sucessores. Além disso, dirigiu com grande habilidade os negócios políticos da corte de Roma e foi por conselhos seus que o imperador Lotário, já muito velho, decidiu-se a abraçar a vida monástica e retirou-se para a abadia de Prum a fim de fazer penitência dos crimes com que manchou a sua longa carreira. Em favor do novo monge, a papisa concedeu à sua abadia o privilégio de uma prescrição de cem anos, cujo ato é mencionado na colecção de Graciano. O império passou em seguida para Luís II, que recebeu a coroa imperial das mãos de Joana.
Sobre o seu amante, que é dito ter falecido de praga de forma violenta, sabe-se pouco. Alguns autores pretendem que ele era camareiro; outros asseveram que era conselheiro ou capelão; o maior número afirma que era cardeal de uma igreja de Roma. Todavia, o mistério dos seus amores permaneceria coberto por um véu impenetrável sem a catástrofe terrível que pôs termo às suas noites de voluptuosidade. A natureza zombava de todas as previsões dos dois amantes: Joana estava grávida!
Na época das Rogações, que correspondia à festa anual que os romanos chamavam Ambarralia, onde havia uma procissão solene, a papisa, segundo o uso estabelecido, montou a cavalo e dirigiu-se à igreja de São Pedro. A papisa, revestida com os ornamentos pontificais, saiu da catedral e dirigiu se à basílica de São João de Latrão com um pomposo séquito que a precedia pela cruz e pelas bandeiras sagradas, e seguida pelos metropolitanos, bispos, cardeais, padres, diáconos, senhores, magistrados e por uma grande multidão do povo.
Tendo chegado à praça pública entre a basílica de São Clemente e o anfiteatro de Domiciano, chamado Coliseu, assaltaram na as dores do parto com tal violência que caiu do cavalo. A infeliz retorcia-se pelo chão com gemidos horríveis, até que, conseguindo rasgar os ornamentos sagrados que a cobriam, no meio de convulsões tremendas e na presença de uma grande multidão, a papisa Joana deu a luz uma criança!